"O corajoso é um ser tranqüilo e seguro, pois nada o perturba, podendo resolver qualquer trabalho, qualquer problema”, diz o mais graduado lutador vivo de Jiu-Jitsu. Sete integrantes da GRACIE Magazine (um fotógrafo, dois editores, dois repórteres, um estagiário e um curioso do setor comercial da revista) escutam o ensinamento do Grande Mestre com muita atenção, ao contrário da mosca, daquelas bem miúdas, que sobrevoa agitada a cabeça de Helio Gracie, 91 anos. Às vezes ela pousa no rosto do faixa-vermelha (já no décimo grau), que tenta espantá-la com as mãos. A mosca consegue se esquivar e volta a aporrinhá-lo. Perdeu o respeito. Que coragem.
Mestre Helio tem sobre o colo um fichário de capa preta. É ali que ele arquiva seus manuscritos filosóficos, um tesouro que jamais havia sido revelado a nenhuma outra equipe de reportagem. Passando o dedo pelo índice, o atual patriarca da família Gracie encontra a página referente a um dos textos que mais gosta. Chama-se “O Homem e o Cachorro”, do qual vale destacar o seguinte aforismo: “Se o Homem andasse de quatro, seria um cão que deveria ser castrado e sempre amordaçado”.
Isso é o que o ilustre entrevistado chama de tioria. Seu passatempo predileto no momento é pensar, refletir sobre a vida. Por conseqüência, ele escreve. “Estou com 92 anos [ele soma os nove meses de gestação à idade]. É difícil ver uma cabeça que funcione tão depressa como a minha. Nunca tive tanto bom senso em toda a minha vida”, revela. Se as rugas dão mostras de que Helio Gracie está sofrendo os ataques desse adversário implacável que é o tempo, a irreverência e genialidade de seu bate-papo deixam claro que o monarca do Jiu-Jitsu anda de mãos dadas com o passar-dos-anos.
Talvez a simplicidade seja uma forte aliada para Helio alcançar esse bem-estar avançado, à beira de completar um século de vida. O relógio Casio, cujo modelo já estava ultrapassado na década de 80, marca as horas sobre o pulso esquerdo do guru. O par de tênis que ele usa está surrado, não tendo nenhum símbolo de marca famosa nas lingüetas. A camiseta branca, com o nome da família desbotado na altura do peito, projeta-se para dentro da calça larga, cinza, presa bem acima da cintura.
Mas não é só por estar alheio às últimas tendências da Fashion Week que o Gracie pode ser definido como um homem simples. Isso fica muito mais nítido quando se percebe a humildade de suas autocríticas (“Sempre fui um magrinho qualquer, um galinha-morta”) ou a objetividade de suas decisões (“Comigo não tem meio-termo, é sim ou não”), além das elementares técnicas de alavancas com que aperfeiçoou o Jiu-Jitsu: “Qualquer aleijado é capaz de aprender os movimentos que criei”.
Há um bom tempo avesso a dar entrevistas (cobra em média 5 mil dólares para responder perguntas da imprensa, os jornalistas japoneses vivem caindo nessa), o decano do Jiu-Jitsu fala com espontaneidade à equipe da GRACIE Magazine. “Eu gosto da revista”, explica. Helio poderia faturar um bocado dando palestras motivacionais em grandes empresas, tanto é que a entrevista ganha um tom de aula. Os repórteres, profissionais pagos para fazer perguntas, passam a maior parte do tempo calados, escutando.
Mas também, quando perguntam...
“O senhor tem medo da morte?”, “Arrepende-se de ter feito ou não ter feito alguma coisa em tanto tempo de vida?”, “O senhor não sente solidão nesse sítio tão grande e tão isolado da cidade?”.
Na entrevista a seguir, você confere a maneira com que Helio Gracie enfrentou cada uma dessas questões, tratando-as como se fossem faixas-brancas dos mais frouxos. Ele ainda teve fôlego para levar a comitiva da GRACIE Magazine ao casebre aos fundos do terreno, onde há um tatame de lona verde-escuro, demonstrando ali algumas posições da arte marcial que revolucionou: o Jiu-Jitsu.
O senhor tem quase um século de vida. Arrepende-se por ter feito ou não ter feito alguma coisa em tanto tempo?
Engraçado, não lembro de nada que eu desaprove. Sempre fui um garoto normal, só tinha um defeito: era brigador. Pelo menos até tomar duas boas lições da vida. Lembro-me da primeira como se fosse hoje. Eu andava pelas ruas ainda molequinho, antes de conhecer o Jiu-Jitsu. Tinha uns 35kg, mas dizia pra qualquer um: “O que tá me olhando?”. Pois um dia um amigo chamado Gugu me disse: “Caxinha [o apelido de Mestre Helio era Caxinguelê], tem um tal de Benigno aí querendo me dar porrada”. Para defender o Gugu, fui brigar com o sujeito sem nem saber quem era. Perguntei ao cara: “Você quer bater no Gugu?”, e dei logo um soco na cara dele. Levei 20 depois. Fiquei com a cara toda inchada. Me perguntavam o que havia acontecido com o meu rosto. Eu dizia que tinha brigado com o Benigno. Respondiam: “Benigno nada, esse cara é maligno, te deu uma surra!” [Risos]. No fim das contas, concluí que foi uma surra merecida. Primeira lição: não ser injusto, não brigar sem motivo.
E a segunda lição?
Bem, anos depois eu estava num ônibus, indo para a praia de Copacabana, e tinha um rapagão sério e forte, olhando na minha direção. Eu me aproximei dele e disse: “Tá me olhando por quê? Tá pensando que sou veado?”. Mas o cara estava completamente alheio, nem prestava atenção em mim. Ele baixou a vista e disse: “Vá se embora, menino”. Foi de um desprezo tão grande que eu nunca mais perturbei ninguém. Logo depois conheci o Jiu-Jitsu e nunca mais briguei na rua. O sujeito briga na rua porque não acredita em si mesmo, quer afrontar as pessoas para provar alguma coisa. Mas depois que aprende Jiu-Jitsu, ele se fortalece de uma forma que passa a tratar brigas de rua com o mesmo desprezo que aquele cara do ônibus tinha por mim.
Quer dizer então que o senhor não guarda mágoas do passado?
Digamos que todos vocês [o Mestre aponta para os sete integrantes da equipe da GRACIE Magazine] me dessem uma surra agora, me quebrassem todo, de modo que eu passasse seis anos na cama, curando os ferimentos. De repente um policial me liga, dizendo que prendeu a turma que me quebrou todo. “Posso matar ou aleijar todos eles, ninguém vai saber, só depende da vontade do senhor”, diria o policial. Minha resposta seria: “Não faça nada, deixe todos eles em paz”. Acredito que a natureza cobra o preço justo que talvez eu não soubesse cobrar. Não me vingo de ninguém. A natureza vai pegá-los por mim, isso me faz dormir tranqüilo, sem peso de coisa nenhuma, sem temor nem nada. Costumo dizer que ninguém tem o que não merece. Seja castigo ou presente. Caiu um tijolo na sua cabeça? Agradeça a Deus, pois você estava devendo alguma coisa que foi paga com a tijolada. Não é fácil pensar assim, é difícil, mas um dia vocês vão chegar lá e entender isso.
Falando em castigos da natureza, como o senhor entende desastres naturais como os tsunamis?
A natureza limpa, aliás, está limpando. Vem coisa pior por aí. Tem umas coisas que eu escrevo, se vocês quiserem ouvir eu vou ler para vocês. Comecei a estudar a natureza e conseqüentemente estudei os homens. Vocês pensam que se conhecem, mas nenhum de vocês sabe o que verdadeiramente é. [Mestre Hélio se retira da varanda para buscar no interior da casa dois fichários. Num deles há uma etiqueta na qual está escrito “Facetas Morais”. Na outra, “Assuntos Gerais”]. Tudo que sai da sua mente é uma faceta moral. Eu listei 58 facetas. Não reparem, sou primário, ignorante, embora não seja muito burro, dou pro gasto. Sempre tive .a intenção de dar boas aulas, de servir como exemplo, de corrigir o defeito dos outros. Mas aí comecei a perceber que eu tinha mais defeitos que as pessoas que eu corrigia. Passei a me examinar, a cavoucar o meu íntimo, a me corrigir para corrigir o outro. Assim, descobri tudo que escrevi nestes fichá-rios. Descobri que sou o pior sujeito que já conheci. Sou bandido, ladrão... Não que eu tenha cometido algum desses crimes, mas já pensei em cometê-los, e pra mim isso basta. Se eu penso, eu sou.
O senhor quer publicar os seus escritos?
Nunca pensei nisso. Não tenho a pretensão de convencer ninguém, esse material é apenas o meu modo de pensar. Não quero influenciar ninguém, o sujeito concorda comigo ou não. Não acredito em religiões ou coisas parecidas. Acredito que a natureza controla tudo no universo. [Pausa para reflexão]. Eu estou enchendo o saco de vocês?
Claro que não, Mestre.
Pois então. Tenho a convicção de que todos nós também somos controlados. Recebemos da natureza de acordo com nossos pensamentos, palavras e obras. Tem sujeito que não faz nada errado, não diz nada errado, mas pensa errado pra cacete. Está pra nascer quem não pensa errado. Até isso estou corrigindo em mim, eu não penso mais errado. Quando me vem um pensamento negativo, eu dou uma porrada nos córneos dele e o mando embora.
Qual o pensamento mais negativo que o senhor já teve?
Quando mais moço, eu era o pior sujeito do mundo. Qualquer pessoa que fazia algo de errado comigo eu tinha vontade de matá-la. Jamais teria chegado à projeção de luta que cheguei se eu fosse um bom sujeito... Quando comecei, só havia bandido pra lutar, enfrentei uma selva humana. E pra dar porrada em bicho, tem que ser pior que bicho: o meu caso. O Homem é o pior bicho da face da Terra.
O senhor tem medo da morte?
Morte? [Breve risada por parte de Mestre Helio]. Por que medo da morte? Não preciso de nada, não tenho nada, não quero nada. Acho besteira o sujeito ter medo de morrer. Devia ter medo de nascer. Já disse aos meus filhos que quando eu morrer quero uma festa. Sem bebida, sem esculhambação [riso geral]. Mas quero uma festa com música, comida... Não sei se vocês acreditam em reencarnação, mas todos nós vamos e voltamos até o dia em que não precisamos voltar mais. Meu irmão [Carlos Gracie, já falecido] dizia que o sujeito só não volta à Terra quando ele se enquadra no todo. Enquanto você pensar erradinho você volta para evoluir. O inferno é aqui mesmo.
Por que o senhor se isolou da cidade grande e veio morar aqui, nesse sítio em Itaipava, Região Serrana do Rio de Janeiro?
Moro aqui há 14 anos. Você sabe a merda que é uma cidade grande, não sabe? Não há ouro no mundo que me faça mudar daqui. No Rio de Janeiro, você sai de casa e não sabe se volta.
O senhor não sente solidão aqui?
Solidão? Sabe o que é solidão? Solidão é o sujeito não gostar de si mesmo. Solidão é não ter uma atividade mental. É difícil ver uma cabeça que funcione tão depressa como a minha. Estou com 92 anos de idade e nenhum de vocês pensa mais rápido ou discute mais rápido que eu. Não há por que ter solidão. Solidão é o sujeito ficar velho e não ter mais amigos. Eu não preciso de amigos. Solidão é o sujeito que não tem o que fazer, não tem o que pensar. É um inferno, uma morte desgraçada. Gosto de viver aqui, ninguém me aporrinha, não tenho vizinhos, a propriedade é enorme, estou a um quilômetro da rua. Só pela minha idade, pela saúde que tenho, a disposição que tenho, a lucidez que tenho hoje... Isso é muito raro, que Deus dê a vocês a mesma coisa. Nunca tive tanto bom senso em toda a minha vida. Dificilmente vocês vão encontrar um homem mais feliz que eu. [Mestre Helio mora em Itaipava na companhia da esposa Vera Gracie].
Quais são os seus passatempos aqui no sítio?
Quando não vem um aluno para tomar aula de Jiu-Jitsu, eu escrevo, jogo paciência com cartas... Sou um vagabundo completo [risos]. Vejo televisão, mas acho a maioria dos programas uma porcaria.
Poucas pessoas chegam à sua idade com tanta lucidez. Existe alguma fórmula para isso?
O rigor da idade faz eu ver as coisas certas ou erradas. Comigo não tem meio-termo, é sim ou não. Procurem de hoje em diante não responder “mais ou menos”, “vou ver”, “talvez”. Respondam apenas sim ou não. Vocês vão ver como é difícil.
Afinal, qual é o melhor golpe do Jiu-Jitsu?
Isso depende da agressão que o sujeito sofre, mas quando eu lutava o golpe que eu mais gostava, porque pra esse não tem valente, era o “sono”: o estrangulamento. Acho que até hoje só ganhei uma luta com chave de braço, o resto dos meus oponentes dormia. Como eu era mais magro que os adversários, eu estava sempre por baixo, fazendo guarda, e dessa posição aplicava o estrangulamento. Portanto, pra mim, o melhor golpe de todos é o estrangulamento da guarda, não tem valente que resista ao sono, qualquer um dorme.
Ou desiste.
Graciemag.
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